terça-feira, 6 de outubro de 2009

DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA

DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA

[...] Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e toca a escrever. Primeiro foi o primo que redigiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: “Interrompa viagem e volte correndo. Tua irmã morreu”. Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:
– Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque. – Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
– Depois, com o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque velório não é lugar de gargalhadas. Foi a vez do cunhado tentar redigir de uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: - “Interrompa viagem e volte correndo. Tua irmã passando muito mal”. Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:
– Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de “passando mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.
Também concordo – falou o primo afastado, sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:
– Acho que tenho a forma ideal. – Pegou o bloco e rabiscou rapidamente: “Interrompa viagem e volte devagar: tua irmã passando mais ou menos”. Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
– Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar; ela já vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!
– Concordo plenamente – disse o facultativo da família, que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “Paciente fora de perigo. Volte assim que puder. Paciente tua irmã”.
De todas as fórmulas até então apresentadas, esta foi a que causou mais revolta.
– Que troço imbecil - gritou o netinho, que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família concordava com ele.
– Não, isso não. Se a gente mandar dizer que ela está fora de perigo, para que pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.
– Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: “Se possível volte. Tua irmã saudosa passando quase mal. Por favor acredite. Cuidado coração. Venha logo. Saudades surpresa”.
– Realmente, esse bate todos os recordes! – disse uma nora professora. – Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “Saudosa” tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa mal ou bem. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor, acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois, “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “Oi coração, tudo bem” E finalmente a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual a surpresa que ela pode esperar?
– Ela pode pensar que a tia está esperando neném – falou um sobrinho.
– Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isso tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:
– Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia:
“Siga viagem divirta-se. Tua irmã está ótima”.
(Jô Soares. O astronauta sem regime.Porto Alegre, L&PM, 1983) Entre palavras 35

Vocabulário:
Infame: desprezível; detestável.
Facultativo: médico.
Ponderar: pesar, analisar os vários aspectos de um assunto.
Requinte: detalhe caprichoso e excessivo.
Eurekiano: derivada de eureka, palavra que significa achei! E que é empregada quando se encontra a solução de um problema bem difícil.
Febrilmente: ansiosamente.

Um comentário:

jaci kussakawa disse...

Que texto divertido, nunca ri tanto em uma aula que é difícil de se concentrar, isto é, as regras gramaticais, abraços, Jaci